BioNOW! #10 – Realidade Virtual e sonhos lúcidos

Por Eduardo Carvalho em

BioNOW! #10 – Realidade Virtual e os sonhos lúcidos

Conhecido não só pela sua arte, como também por ser portador de um dos bigodes mais emblemáticos do século XX, Salvador Dalí encontra-se num grupo restrito de personalidades históricas que eram capazes de arquitetar os próprios sonhos. Esta capacidade de reconhecer e moldar a realidade onírica está patente no conceito de “sonho lúcido”.

Existem dois tipos de sonho lúcido: o induzido pelo sonho, que ocorre quando algo no sonho leva o sonhador a aperceber-se do seu estado; e o induzido pelo sonhador, que é caracterizado por uma transição entre o estado de alerta e o sonho sem que haja perda de consciência. É, precisamente, este último tipo que inspirou Dalí a conceber inúmeras das suas obras.

Figura 1 – Sonho causado pelo voo de uma abelha ao redor de uma romã um segundo antes de acordar, 1944 – Salvador Dalí.

Um estudo recente, publicado na The Royal Society por investigadores do Donders Sleep & Memory Lab, sugere que a Realidade Virtual (RV) induz um aumento na frequência de sonhos lúcidos nos seus utilizadores, através de um fenómeno chamado primação (ou priming em inglês). Priming acontece quando a exposição a um estímulo influencia os estímulos seguintes, sem que haja intenção ou consciência.

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Castanholas. Barcelona. M _ d _ _ _.  E agora?

 

Ora, durante uma experiência de RV, o utilizador está constantemente num estado de dissonância, uma vez que aquilo que o rodeia não coincide na perfeição com os seus sentidos. Dado que esta dissonância é essencialmente um questionamento da realidade que acontece maioritariamente de forma inconsciente, os investigadores perguntaram-se se este hábito podia estender-se aos sonhos.

Para testar esta hipótese, participantes foram divididos em dois grupos, um de controlo e outro de RV. Ambos foram introduzidos ao conceito de questionar a realidade, tendo lhes sido incutido o hábito de a questionarem várias vezes ao dia. Para além disso, o grupo de RV começou por ser submetido a múltiplas sessões de jogos em ambiente virtual cujos cenários se assemelhavam aos dos sonhos. Posteriormente, as sessões passaram a ter contextos mais realistas (como o da cafetaria apresentado na imagem abaixo) que progressivamente iam ficando mais bizarros – por exemplo, relógios a andar ao contrário, manequins a tomar o lugar de pessoas, e falhas gravitacionais – sem que estas mudanças ocorressem no campo de visão do participante, tal como acontece nos sonhos.

Figura 2 – Cenário principal das sessões de Realidade Virtual

Os resultados obtidos mostraram um aumento significativo de sonhos lúcidos no grupo de participantes de RV comparativamente com o grupo de controlo, o que de facto corrobora a hipótese colocada. Numa possível explicação, os investigadores propõem que, ao incorporarem elementos das sessões nos sonhos, os participantes são relembrados do objetivo do estudo e apercebem-se que estão a sonhar ao fazer a verificação da realidade. Outra consideração interessante jaz na ideia de que os resultados podem ser uma consequência do estudo per se. Por outras palavras, o facto dos participantes saberem o objetivo do estudo pode torná-los mais suscetíveis a estados psicológicos que facilitam a ocorrência de sonhos lúcidos.

Independentemente da explicação, seja ela singular ou resultado de uma pluralidade de fatores, há algo de sedutor nesta ideia de podermos ser mais que meros espectadores nas experiências criadas pelo nosso subconsciente, de podermos alargar o processo criativo ao misterioso repouso que consome tanto do nosso tempo. Quem sabe se não há um Dalí em cada um de nós à espera de ser picado pela abelha virtual.

Sabe mais em:
https://royalsocietypublishing.org/doi/suppl/10.1098/rstb.2019.0697

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