BioNOW! #74 – Regeneração cardíaca através de cancro?

Por Paulo Pedroso em

BioNOW! #74 - Regeneração cardíaca através de cancro?

Passos controversos para a medicina do futuro

Alguma vez ouviste falar de cancro do coração? Se sim, ficas a saber que não só é algo extremamente raro, como mais normalmente resulta de metástases, ou seja, da migração de células cancerígenas de outros tecidos.

Como aprendemos, o cancro é uma doença fundamental da biologia, já que se pode gerar devido a causas como erros na divisão celulares, mutações, entre outras. Portanto, cancro na pele e noutros tecidos bastante proliferativos é comum, mas por oposição no coração não, já que é composto por células terminalmente diferenciadas que não entram em mitose. Há então uma relação estreita entre a capacidade de um tecido se regenerar, através da produção de novas células, e da probabilidade de ocorrência de cancro. 
Durante o desenvolvimento embirónico e fetal, as células percursoras de cardiomiócitos dividem rapidamente para formar tecido estriado – o miocárdio. Contudo, após maturação perdem essa capacidade, passando a um estado senescente. No caso de dano, o coração em vez de regenerar, repara-se pelo preenchimento de tecido conjuntivo não funcional, o que em último caso leva a falha cardíaca.

Como tal, surge o máximo interesse em arranjar formas de estudar e regenerar este órgão tão vital, tal como engenheiros biomédicos de Duke procuram. A nova estratégia que a equipa está a explorar para incentivar o músculo cardíaco a regenerar não podia ser mais controversa… cancro!

O modelo em estudo basea-se na exploração da sinalização responsável pelo controlo da proliferação celular – MAPK (proteína kinase ativada por mitogénese) – aplicada a células de ratinho neonatal crescidas num ambiente 3D, possibilitado por hidrogel. Por ser já bastante estudada e conhecida que a sinalização mutada é agressiva na indução da proliferação celular, a poderosa mutação V600E no gene BRAF (B-Raf proto-oncogene), presente em melanoma, foi escolhida como alvo pela equipa.

A mutação para reverter a senescência é introduzida por infeção das células com um vírus tranportador do gene BRAF mutado, para que seja inserido de forma permanente no genoma das células. Contudo será necessário procurar melhor controlo espacial com um sistema de entrega diferente, para direcionar a mutação apenas para as células desejadas, como, por exemplo, por optogenética. 

Fig 1 – Efeito de mutação V600E no gene BRAF comparado em dois cortes transversais de tecido cardíaco de ratinho.
À direita, pela marcação a verde, notamos que nas células alteradas há mais DNA sintetizado de novo, que evidencia a capacidade mitótica induzida. Porém, à semelhança de outros cancros, esta ativação é forte e generalizada a todas as células do tecido, o que representa uma desvantagem de controlo e manutenção da morfologia e função do orgão. Isto é, para recuperarem a habilidade de dividir prontamente, os cardiomiócitos cederam maquinaria molecular fundamental para a contração, e em orgão supõe-se que bombeamento sanguíneo. Este obstáculo de induzir regeneração sem causar dano na perda da força contrátil está dependente do controlo espacial mencionado anteriormente, mas também de dosagem e duração de ativação do gene.

Fig 1 –  Secções transversais de sarcórmeros normais (esquerda) com padtrão estriado espectado comparado aos sarcómeros mutantes (direita) com uma morfologia significativamente desorgaizada, e, eventualmente, pouco funcional.
Assim, apesar da situação parecer crítica, um truque para tirar o coração da cartola poderia se usar apenas uma janela de ação de atividade do gene, de forma a permitir uma proliferação mínima , controlada, que cessasse, permitindo reestablecer a arquitetura natural. Essa janela seria depois da replicação iniciar, mas antes da maquinaria contrátil ser afetada a larga escala. Alternativamente, poderia ser possível controlar também com a administração de outro fármaco com efeito reconstrutivo da maquinário de bombeamento, revertendo o desmantelamento após a proliferação.

Futuramente, espera-se que a estratégia seja expandida para corações de animais, de forma a ver se segue o comportamento observado em células e tecidos. Como trabalhar com organismos vivos implica um maior nível de complexidade será interessante perceber também a importância de outros genes no processo da ativação mitogénica e outros efeitos pela mutação do gene BRAF.

Este processo demonstra um bom uso do racional de  engenharia ao induzir fenótipos não naturais para extrair conclusões e descobertas brilhantes. A cultura e testastagem destes tecidos mutantes permitirá estudar a sinalização cardíaca e explorar de forma vantajosa técnicas que permitam benificiar a área da medicina regenerativa.

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