BioNOW! #39 – Do tecido muscular ao têxtil: uma fórmula para o sucesso?

Por Eduardo Carvalho em

BioNOW! #39 - Do tecido muscular ao têxtil: uma fórmula para o sucesso?

Um dos problemas mais prementes da nossa civilização do espetáculo é aquilo que alguns denominam de “escrita preguiçosa” e outros, ilustres poliglotas, de “clichés”. Atire a primeira pedra aquele que nunca revirou os olhos quando o herói, depois de ser baleado durante o clímax do filme e de se instalar o melodrama nos outros protagonistas, revela um colete à prova de bala sob os trajes (que muito provavelmente serão um novo “look” da próxima estação). Ora, tentemos resolver esse cenário: não ao estilo hitchcockiano, mas com um “Easter egg”. Imaginemos que o colete é feito de fibras musculares. Não, melhor ainda. Imaginemos, antes, que se trata de um fato de super-herói (o que, desde já, garantiria o sucesso nas bilheteiras), todo ele feito de fibras musculares. «Bom… isso parece mais o estilo do vilão.» «Ah, mas foi produzido sem matar um único animal!» «Pronto, de um super-herói vegan.» Um fato que consegue absorver mais energia que o algodão, a seda, o nylon e, até mesmo, o Kevlar. Daí, ter amparado o impacto. E desengane-se quem assumir que só o fantasioso universo Marvel poderia conter semelhante enredo. Pois, por vezes, a realidade tem rasgos de ficção… 

Num estudo publicado recentemente na Nature Communications, um grupo de investigadores da McKelvey School of Engineering desenvolveu um método de produção de titina, utilizando culturas de bactérias, polímero esse que pode ser transformado em fibras. A titina é a maior proteína natural conhecida e está presente em larga quantidade no tecido muscular, funcionando como a mola molecular responsável pela sua elasticidade passiva. Fosse o homem reproduzir o que a natureza, por si só, consegue sem dificuldade e em abundância, não estaríamos na presença de grande feito. Contudo, a titina produzida pelos investigadores tem uma característica especial.   

Não é novidade que a biologia e a fisiologia são fortemente moldadas por pressões naturais (e, diga-se, artificiais) – procurando constantemente formas e mecanismos mais eficientes no que diz respeito ao uso de matéria e energia. Características tão simples como a forma dos ovos, a distribuição das nervuras das folhas e morfologia de um cílio são resultado de sucessivas otimizações, algumas delas que datam desde os primórdios da vida na terra. O mesmo pode ser dito da extensão das proteínas. Para produzir titina de peso molecular ultra-alto (UHMW, sigla em inglês), cerca de 50 vezes maior que a produzida naturalmente, os investigadores tiveram de contornar obstáculos como a instabilidade genética, a baixa eficiência da tradução e o fardo metabólico nas bactérias.

Figura 1 – Esquema da estrutura multi-escalar do músculo e representação esquemática da polimerização da titina em E. coli. (a) O tecido muscular (1) é composto por células especializadas, alongadas (> 1 cm), chamadas fibras musculares (2). As fibras musculares são embaladas com miofibrilas proteicas (3) que cobrem todo o comprimento da célula. As miofibrilas são compostas por pilhas repetidas de elementos quimicamente controláveis e contráteis chamados sarcómeros. (4) Os sarcómeros são compostos principalmente de três proteínas: actina, miosina e titina. A titina abrange metade do comprimento do sarcómero, ancorando as linhas Z e M opostas, e consiste em centenas de domínios de imunoglobulina (Ig) de repetição que são parte integrante da força passiva (isto é, resistência à deformação sem entrada de energia), capacidade de amortecimento, e recuperação mecânica da fibra muscular macroscópica. (b) Para facilitar a produção de polímero de titina UHMW in vivo, uma sequência de codificação proteica de titina de coelho (4Ig; púrpura) foi ladeada por SIs complementares, gp41-1C (IntC; verde) e gp41-1N (IntN; azul) (i). O IntC-4Ig-IntN, codificado em sequência de ADN, foi produzido em E. coli sob o controlo do promotor induzível PLacO-1 (ii). O monómero foi sobreexpresso em culturas num biorreator (iii) e polimerizado intracelularmente através de sucessivas rondas de ligação intermolecular, dando origem a titina UHMW (iv). A purificação e o processamento produziram fibras de titina que albergavam a capacidade de amortecimento e recuperação mecânica do músculo, juntamente com alta resistência e tenacidade (v).

Depois de recolhidas, as proteínas foram convertidas, através de um processo chamado wet-spinning, em fibras de cerca de 10 microns de diâmetro – o equivalente a um décimo da espessura de um fio de cabelo. De seguida, foi analisada a estrutura destas fibras, com o intuito de identificar não só as propriedades mecânicas, como também os mecanismos responsáveis pela combinação excecional de tenacidade, força, capacidade de amortecimento e capacidade de dispersar energia mecânica através do calor. Os resultados mostram que as fibras se revelaram mais resistentes que o Kevlar, material usado nos coletes à prova de bala e nos fatos espaciais.

Figura 2 – Estudos mecânicos das fibras produzidas com titina UHMW revelam alta tenacidade, capacidade de amortecimento, e recuperação mecânica semelhante ao músculo natural. (a) Curvas de tensão-deformação de fibras de titina UHMW produzidas microbialmente (polímero; púrpura) e de baixa MW (monómero; dourado). (b) Box-plots da tensão-deformação extraídas das curvas de tensão-deformação para fibras de polímero (púrpura) e monómero (dourado). (c) Resistência das fibras de titina de UHMW produzidas microbialmente (azul), naturais (verde), e artificiais (cinzentas) em comparação com a das fibras de titina de UHMW produzidas neste trabalho (vermelho). (d) Curvas de carga/descarga das fibras de titina de UHMW produzidas microbialmente adquiridas em estirpes crescentes de 0,6-30%. (e) Capacidade média de amortecimento (curva azul) e energia de amortecimento (curva rosa) em cada estirpe testada em (d). (f) Curvas de tensão-deformação para fibras de titina UHMW produzidas microbialmente sujeitas a 11 ciclos consecutivos de carga/descarga com um minuto de tratamento de ar húmido (95% RH) entre ciclos. A curva tensão-deformação do primeiro ciclo é de cor vermelha. Os ciclos seguintes utilizam outras cores. (g) Capacidade média de amortecimento (curva azul) e energia de amortecimento (curva rosa) durante ciclos consecutivos com tratamento de ar húmido entre ciclos.

Fora estas qualidades mecânicas, os investigadores salientam ainda outra característica: a possível biocompatibilidade. A ser verificada, o material goza de um potencial imenso em aplicações biomédicas como, por exemplo, no fabrico de suturas ou em regeneração de tecidos. 

Por último, o facto de todo o engenhoso processo de produção destas fibras ser prático, barato e escalável, merece especial atenção. Afinal de contas, talvez os escritores de guiões não mereçam a nossa reprovação, pois da mesma forma que estes conseguem continuar a colar-nos ao grande ecrã com narrativas criadas a partir de fórmulas antigas, inúmeros novos materiais com propriedades únicas ou combinações inéditas podem surgir da aplicação da metodologia dos investigadores. 

Categorias: BioNOW!